Não se vê todo dia um Holy Motors, novo filme de Leos Carax depois de Pola X (1999). Ou todo ano, pra ser sincero. Filmes sem começo, meio e fim convencionais assustam o público acostumado com blockbusters de Hollywood cuja história está totalmente contida no roteiro, sem deixar margem para interpretações. Atualmente, quem tem tempo para perder tentando pensar no que o filme quis dizer? É comum ver alguém dizendo que para gostar de certos filmes é preciso antes desligar o cérebro. Com um roteiro alegórico em vez de óbvio, Holy Motors segue na contramão do cinema-pipoca, e a recompensa para os que se dispuserem a assisti-lo com o cérebro ligado não é pequena.
Resumo maçante do filme: Um dia na vida de um ator (Denis Lavant) interpretando no mínimo onze papéis diferentes, de uma mendiga idosa a um assassino, de um pai de família a um gnomo alucinado.
Por que ele faz isso? Onde está a plateia? E as câmeras? O filme não dá respostas definitivas, apenas as sugere através dos diálogos dos personagens. O diretor Leos Carax odeia dar entrevistas, e nas poucas que achei, não esclareceu muita coisa. O início do filme mostra o próprio Carax despertando num quarto com uma floresta pintada na parede. Uma referência, segundo o diretor, às primeiras linhas da Divina Comédia, de Dante Alighieri: “No meio da jornada da vida, eu me encontro numa floresta escura, longe do caminho certo”.
Seu dedo médio transforma-se numa chave, que abre uma porta oculta e leva a um cinema onde toda a plateia está adormecida, crítica não muito sutil à passividade dos espectadores atuais. Leos Carax parece sugerir que um novo tipo de cinema é necessário para o público sair da letargia. Nesse ponto a história muda o foco para Oscar, o personagem de Denis Lavant, colaborador frequente de Carax e ex-dançarino, ex-acrobata, ex-mímico (informação pertinente para acreditarmos que a invejável cena da captura de movimentos foi feita sem dublês).
Oscar deixa sua mansão pela manhã, despedindo-se de sua filha numa cena que seria singela se não fosse pela presença dos guardas armados. Ele entra numa limusine-camarim, guiada por Céline (Édith Scob, de Os Olhos Sem Rosto, clássico do horror francês), onde se prepara para os diversos “compromissos”. Com perucas, maquiagem e roupas diferentes, Denis Lavant entrega-se ao papel como poucos seriam capazes. Nas próximas duas horas, ele será o Sr. Oscar, uma velha mendiga, um ator de captura de movimentos (numa cena que evoca Chaplin em “Tempos Modernos”), um banqueiro, o Sr. Merde, um pai, um acordeonista, um assassino, uma vítima, um tio moribundo (cena que daria um Oscar para qualquer ator) e um marido voltando para sua família depois de um dia de trabalho.
Hollywood adora atores que ganham ou perdem peso, interpretam gente morta, ou se enfeiam para o papel, por isso acho que será uma surpresa se Lavant ganhar o prêmio de melhor ator, por mergulhar tão completamente num personagem complexo, mas fictício. Ainda mais num filme que não é falado em inglês e critica tão duramente o modelo de cinema atual, não deixando de lado nem os downloads (“os humanos não querem mais máquinas visíveis”).
Beirando as duas horas de duração, o filme não se torna cansativo justamente por ser episódico, onde cada segmento, mesmo sem ligação alguma com o anterior, traz suficiente conteúdo emocional para o espectador se identificar. A comovente cena abaixo, com a belíssima atriz Élise Lhomeau, transmite uma tristeza tão grande, e de forma tão eficaz, que o final dela é incrivelmente desconcertante.
Fica evidente depois de algum tempo que a intenção do filme é ser uma alegoria sobre o estado atual do cinema e o papel da identidade num mundo onde cada um de nós pode ser outra pessoa, dependendo da rede social em que estamos ou com quem interagimos. Ter múltipla personalidade é tão fácil e rápido quanto criar um novo login e senha. O cinema costumava ser o lugar onde as pessoas podiam viver outras vidas, ser alguém diferente, com uma vida mais emocionante. Hoje, com games onde o jogador assume um papel e cria o personagem da forma que quiser, apenas sentar diante de uma tela enquanto assiste-se ao filme já não parece tão atrativo.
A cena onde a questão da identidade é tratada de forma mais contundente é quando Oscar mata um tal de Alex, também interpretado por Denis Lavant. Depois de esfaquear Alex no pescoço, Oscar começa a raspar sua cabeça e barba, de forma que ambos tornam-se idênticos. Mas Alex consegue pegar a faca de Oscar e acerta-o no pescoço. Na próxima cena, um deles é mostrado cambaleando de volta à limusine branca. Qual deles sobreviveu? Não há como saber. E será que faz diferença?
A cena ganha mais simbolismo quando descobrimos que Denis Lavant atuou em todos os filmes anteriores de Leos Carax, e em todos eles seu personagem chamava-se Alex. O verdadeiro nome de Leos Carax é Alexandre Oscar Dupont. Alex está morto. Vida longa a Oscar.
Os únicos outros filmes de Leos Carax que assisti foram Os Amantes de Pont-Neuf e Mauvais Sang, em alguma sessão da TV Cultura, anos atrás. Mas parece que Holy Motors traz algumas referências a esses e outros filmes anteriores de Carax, além de Cocteau, Buñuel e Godard. A loja de departamentos La Samaritaine, por exemplo, cenário de uma das cenas mais intensas do filme (graças, em boa parte, à interpretação de Kylie Minogue), aparecia muito em Os Amantes de Pont-Neuf. Michel Piccoli, famoso ator francês que já trabalhou com grandes diretores como Jean Renoir e Alfred Hitchcock, aparece aqui carregado de maquiagem grotesca, como em Mauvais Sang.
O personagem “Merde”, que sequestra a impassível Eva Mendes como se fosse um King Kong anão, veio do segmento dirigido por Leos Carax do filme Tokyo. No final do filme, Édith Scob coloca a mesma máscara que usou por toda a duração de Os Olhos Sem Rosto, em 1960 (o nome de Georges Franju, diretor de Os Olhos Sem Rosto, aparece nos créditos finais, durante os agradecimentos). Édith Scob já havia trabalhado com Leos Carax em Os Amantes de Pont-Neuf, mas depois da edição final, tudo o que restou dela no filme foram as mãos e cabelos, portanto Carax diz que lhe devia um papel de verdade, e ela tornou-se a fada-madrinha do filme. E a filha do próprio Carax atua em Holy Motors.
Depois do arrepiante final, é impossível não achar simplória demais a fórmula de filmes consagrada por Hollywood. História em três atos? Bah. Atores principais que parecem modelos? Eca. Mensagem edificante no final? Blergh.
Resta-nos esperar que Leos Carax não demore 13 anos de novo para lançar seu próximo filme. Ele diz que gostaria de fazer um filme de super-heróis, não necessariamente americanos. Afirma ter gostado de Chronicle (Poder Sem Limites no Brasil) porque “depois que os garotos ganham os poderes, eles ficam voando por um bom tempo. Nos filmes do Homem-Aranha, ele só aparece se balançando por uns três segundos”.